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tomografia: uma excursão existencial
dois hospitais, um exame, uma ambulância e um sanduíche ruim
1.
passar algumas horas em um hospital aguçou o meu olhar. muito provavelmente porque meu pacote de internet já tinha batido 80% e eu teria que economizar pra chamar um carro na volta pra casa. esse momento de contemplação tem a ver com a súbita necessidade que tive de completar um jejum seco de quatro horas pra fazer um exame1.
observar e fazer anotações no bloco de notas do meu celular acabou sendo uma das poucas coisas pra fazer já que estava ficando sem internet e, no caminho, também notei que meu kindle estava completamente descarregado. observar a equipe do hospital2 conversando nos corredores era de algum entretenimento — na maioria das vezes, inevitável.
ter passado tanto tempo ali promoveu em mim certo esvaziamento. eu não estava passando mal, acidentado, acamado, nem nada, apenas esperava por um exame. uma pessoa nas minhas condições, acaba recebendo apenas a atenção necessária ali, o que não é muito e nem é ruim. no meu caso, não era descaso. ninguém nota a sua existência ali porque os trabalhadores do hospital e os acompanhantes das pessoas internadas estão sempre indo de uma sala a outra, de um corredor a outro, com outras coisas em mente.
não caindo no vício de estar constantemente se distraindo, como incidentalmente eu fui impedido de cair, até que sobra bastante tempo pra pensar. talvez caiba aqui uma adaptação salomônica de que é melhor ir a um hospital do que a uma festa.
2.
parte da minha espera também envolvia o fato de que eu não faria o exame naquele hospital, porque ele está em reformas e/ou está sem o equipamento necessário. o tempo de espera do meu jejum era conveniente para passar o horário de almoço do outro hospital — ou assim me disseram.
o transporte para o outro hospital seria feito pela ambulância disponível, mas eu não iria sozinho. o que, na verdade, faz bastante sentido. na parte de trás de uma ambulância cabem uma maca mais três pessoas sentadas. esse foi o número de companheiros que tive.
confesso que a experiência da ambulância ainda me é bem esquisita e, em todos os rascunhos deste texto, ao escrever o nome do veículo, digitava “vã” pra só depois apagar e colocar “ambulância” no lugar.
3.
Seu A., um senhorzinho acamado; Dona I., uma senhora que caiu de uma escada e bateu a cabeça; e L., um trabalhador autônomo que caiu de um telhado. eram essas as pessoas com quem eu estava na ambulância.
aqui, é importante dizer que me dava até um pouco de vergonha de integrar esse pequeno grupo, porque eu não havia caído de lugar nenhum, batido coisa alguma ou estava acamado. eu só precisava confirmar se tinha realmente cristais menores que 0,7 cm nos meus rins. outra coisa que fazia com que eu me sentisse um pouco menos merecedor de estar ali, era o fato de que todos os meus companheiros eram muito educados e preocupados uns com os outros e comigo também.
Dona I., por exemplo, mostrou-se verdadeiramente comovida quando soube que eu havia dado entrada no hospital às 7h da manhã e estava até agora (umas 14h) sem comer.
4.
os responsáveis pela nossa ida foram uma moça muito simpática e bem humorada3 que conversava com a gente o tempo todo e o motorista da ambulância, também muito simpático, mas falava menos. as conversas eram boas porque sugeriam alguma normalidade para aquele dia em que estávamos em um hospital, o que, ao menos pra mim, e imagino que pra L. também, não era tão normal. Seu A. já estava acamado há bastante tempo e Dona I., pelo que eu entendi, trabalhava no hospital.
aliás, hospitais têm uma arquitetura muito hostil. tenho a sensação de que é preciso viver lá dentro para aprender a andar lá dentro. para os “turistas”, seriam necessários aqueles mapas em diversos lugares do hospital com uma seta vermelha escrito “você está aqui” — e até então eu não havia visto nenhum. existe uma sensação constante de estar deslocado e depois de virar quatro ou cinco corredores algumas vezes, você perde a sensação de que “é só voltar pro lugar de onde veio”.
a simpatia e a conversa ligeiramente excessiva da nossa companheira era um bom indicador. uma pessoa que estivesse tão concentrada em conversar ali, não devia estar preocupada em se perder, o que aliviava o meu medo infantil de ficar perdido dentro de ambientes fechados4 .
5.
vale dizer que esse hospital aonde fomos fazer o exame era particular. totalmente diferente do hospital público de onde saímos em uma ambulância com goteiras iguaçuenses que, felizmente, pingavam em todo mundo, menos no Seu A. acabamos descobrindo as fragilidades da estrutura da ambulância porque, justamente na hora de sair, uma tempestade de verão começou a cair5.
o hospital particular oferecia uma estética colonizada das séries (grey’s anatomy, house, etc. etc.), ou talvez não seja algo colonizado e seja apenas um padrão universal — não tenho experiência. ali eu me arrependi de ter recusado o moletom que minha esposa quis me passar junto com o carregador do celular na recepção do outro hospital. quando recusei, estava próximo de começar a suar e não sabia que mais tarde encontraria um ar-condicionado central capaz de oferecer a experiência de um churrasco em um quintal canadense durante o inverno.
6.
quando finalmente fui fazer fazer meu exame, uma tomografia corporal completa do abdome com contraste, descobrimos que a punção que haviam feito no meu pulso direito não funcionou bem e o contraste acabou vazando na esteira da máquina de t. em vez de entrar no meu sistema circulatório. a enfermeira do hospital particular fez críticas educadas ao trabalho da enfermeira do hospital público enquanto me fazia outra punção, dessa vez no meu braço esquerdo.
me lembrei que, enquanto preenchia o formulário necessário para fazer a primeira punção, tive de confirmar que não tinha sintomas de gravidez. não acredito que esse seja um momento que valha a pena de ser registrado e lido, mas você já está aqui.
o imbróglio com as punções e o contraste fez com que o exame demorasse um pouco. quando saí, reencontrei com meus companheiros de passeio que conversavam no corredor esperando sua vez de fazer a tc. a conversa se animou em papos que não tinham a ver com as nossas condições no momento — essa parte já havia acontecido dentro da ambulância. Dona I. defendia sua viuvez convicta para a enfermeira T. dizendo que faria uma mudança a pé de uma cidade a outra aqui no norte do estado do Espírito Santo destemidamente, mas que não dormiria de novo na mesma cama que um homem.
7.
quando a conversa desanimou, percebi que com o exame acabado eu poderia, finalmente quebrar o jejum seco. saí em busca de um bebedouro pelos corredores vazios do hospital, já que ia demorar até eu, finalmente, poder comer alguma coisa. e eu não poderia ter sido mais feliz em minha busca.
numa esquina particularmente vazia do hospital, encontrei uma pequena recepção que além de água tinha café (milagrosamente sem açúcar). é provável que aquele café tenha me comprado mais algumas horas de vida sem dor de cabeça naquele dia — o que inevitavelmente acabaria acontecendo. quando retornei ao corredor com o café na mão, Dona I. deu um sorriso largo e perguntou “menino! onde você encontrou isso?” apontei educadamente o caminho para Shangri-Lá, mas, quando ela voltou de lá com um copo descartável cheio de café, ofereceu ao nosso motorista.

“se eu beber isso agora, vou ficar com muita vontade de fumar.”
nesse momento, apenas aguardávamos o final do exame do Seu A., o que não demorou. ajudei a guiar a maca dele para a ambulância (assim como havia feito quando chegamos ao h. part.) e voltamos para o h. públi., onde esperei por mais algumas horas para encerrar a minha consulta.
8.
finalmente, era a hora voltar pra casa. mas antes tive de comprar um remédio na farmácia e pensei em, por que não, enfim comer alguma coisa na providencial lanchonete que havia ali por perto.
comi, pela primeira vez naquele dia. um sanduíche natural feio, que com certeza tinha o sabor do suco que saía dos pés de Caronte ao fim de um intenso dia de trabalho.
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