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observar, relatar e narrar
vargas, a ponte e david foster wallace 🌉
1.
eu costumava me preocupar demasiadamente com o fato de que talvez morar em uma cidade provinciana influenciasse minha escrita. vez ou outra, isso ainda me preocupa e me irrito com a preocupação, porque a influência é algo inevitável.
mas esse é um assunto no qual eu não devo entrar muito detalhadamente porque 1) exceto por um ou outro cartão postal, não há muito o que se dizer da cidade mesmo e 2) não sei se fui eu quem azedou de vez em relação à cidade, ou se existe algum memorando sobre a imperiosidade de se gostar de onde se nasceu e se mora que eu não recebi e que todos os demais participantes dessa existência parecem ter assinado embaixo, mas sempre que eu expresso minhas idiossincrasias sobre linhares as pessoas me fuzilam com olhares de reprovação, como se eu estivesse rejeitando amor de mãe.
eu entendo o pensamento de que rejeitar a própria cidade seja mais ou menos como cuspir no prato que comeu, mas a semelhança principal dessa metáfora do cotidiano com o que uma mãe oferece pra um filho é que tanto a mãe quanto a cidade são circunstanciais — nunca se escolhe a mãe e, a princípio, nem a cidade natal.
contudo, existe também o fato de que, enquanto as mães constantemente optam por favorecer os filhos, as cidades são indiferentes e não favorecem a ninguém. são quase que exclusivamente movidas por interesses alheios de quem já está sempre ganhando alguma coisa com elas.
máquinas de moer gente.
2.
trocando emails com d., outro escritor, depois de ler religiosamente suas newsletter que, quase sempre aos domingos e curiosamente eu as leio logo depois do culto no caminho pra casa, estive falando sobre como david foster wallace me cerca há alguns anos. não sei quantas vezes li, ouvi e torturei meus alunos com “this is water”. chorei tardiamente o suicídio do escritor lendo uma reportagem imensa da rolling stone que o biografava. assisti e reassisti a “the end of the tour” algumas vezes. contudo, nunca o havia lido nas páginas encadernadas de uma edição de livro.
então, após a troca de emails com d., resolvi finalmente ir atrás de ler dfw. comprei “ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”.
o livro traz um conjunto de ensaios literário-jornalísticos em contribuição com algumas revistas principalmente. o primeiro ensaio, homônimo da coletânea, mostra dfw indo pra cima e pra baixo descrevendo a provincianamente megalomaníaca feira agropecuária estadual de illiniois e tecendo vários comentários que vão das observações mais banais e corriqueiras às mais atentas e meritórias. reflexões filosóficas surgem dessas observações aqui, ali e acolá.
3.
com um professor de história amigo meu, aprendi um fato curioso sobre a minha linhares. havia uma ponte aqui chamada “ponte getúlio vargas” que passava sobre o rio doce a caminho de vitória, capital do estado. a ponte foi popularmente batizada de “ponte velha” quando construíram a “ponte nova”, a qual eu não sei o nome. a velha, então, tornou-se point da vida saudável da região porque foi interditada para veículos e passou a ser usada apenas para caminhada.

infelizmente, a ponte velha caiu e fez uma vítima fatal. em uma casa na praça central da cidade, funcionava um pequeno museu com um banner onde se lia em comic sans pretas fazendo pouquíssimo contraste com a imagem ao fundo: “nossa história é preciso preservar”. a imagem era da ponte velha em ruínas no rio doce.
a ponte getúlio vargas foi inaugurada pelo próprio na década de 50. um mês e dois dias após a inauguração da ponte, vargas se matou.
4.
em alguma entrevista, ou no próprio ensaio (não me recordo), dfw fala que escrever textos como este da feira agrícola era como se ele fosse um olho gigante orbitando por todos os lugares e simplesmente observando e descrevendo o máximo de coisas que via com o máximo de detalhes possível.
parece um método bobo para realizar uma tarefa como essa, mas observar é diferente de simplesmente enxergar as coisas — enxergar é circunstancial e inevitável, enquanto observar pode estar, e no caso aqui sempre está, cheio de idiossincrasias. é uma interpretação da vida externa através da vida interna.
em “the end of the tour”, uma das coisas que mais chamam a atenção é o frenesi do repórter david lipsky em busca de um grande gênio, cheio de manias e exageros e excessos que supunha que dfw teria por ter sido capaz de escrever “graça infinita”. lipsky encontra-se, na maior parte do tempo, frustrado por ter em dfw um cara absolutamente normal em seus hábitos, em vez do escritor rockstar maníaco que esperava. porém, era na leitura de mundo que dfw mostrava-se excepcional, graças a um poder de observação absurdo. aquilo que, no filme, em determinado momento, dfw explora, dizendo que ele prezava por ser um cara normal (em inglês há toda uma outra conotação para normal guy que no roteiro do filme vira normalguyness), mas, apesar disso, ele também tem uma vida interna intensa.
e escrever, quase sempre, é dar vazão ao diálogo interno.
5.
getúlio ter interrompido a sua vida depois de ter vindo pra linhares inaugurar uma ponte que viria a desabar é apenas posicionar os fatos em uma linha do tempo. mas observar é mais do que enxergar e narrar é mais do que relatar.
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