[MMS] A Evolução de uma Separação

Etgar Keret

esbarrei nesse conto do sem querer através do twitter do joão montanaro e, depois de ler algumas vezes, resolvi traduzir. recentemente, o aceitou publicar minha tradução e… bem, o resultado é esse aí. boa leitura.

No início, nós éramos uma célula. Depois nos tornamos uma ameba, então um peixe e, depois de uma era muito longa e frustrante, nos transformamos num lagarto. Conseguimos nos lembrar que nessa era sentíamos que a terra era mole e instável sob os nossos pés, por isso subimos nas árvores. Lá em cima, nas copas, nós nos sentíamos seguros. Num dado momento, descemos e começamos a andar eretos e a falar e, assim que começamos a falar, não paramos mais. Depois disso, a gente assistiu TV pra caramba; foi uma época fantástica. A gente sempre ria nos lugares errados e as pessoas ficavam olhando e perguntando “qual é a graça?” E a gente nem se preocupava em responder — esse era o tanto que nos importávamos. Nós nos prometemos encontrar um trabalho ao qual amássemos, mas, quando isso não deu certo, a gente se acomodou com um que não odiávamos e achamos que demos sorte, e depois azar, e depois sorte de novo. De repente, nossos pais ficaram à beira da morte e, então, morreram. Um segundo antes de eles partirem, apertamos suas mãos bem forte e lhes dissemos que nós os perdoávamos por tudo. Tudo. Nossa voz estremeceu quando o dissemos, porque não estávamos convencidos de que estávamos falando a verdade e tivemos medo de que eles percebessem. Menos de um ano depois disso, nosso filho nasceu e ele também subiu nas árvores e se sentiu seguro lá em cima e, num dado momento, também desceu de lá e foi para a faculdade. Então nós ficamos sozinhos e começou a fazer frio. Mas não que nem daquela outra vez, há vários éons, quando nos escondíamos em tocas e observávamos os dinossauros morrendo congelados, mas ainda assim, fazia frio. E nós começamos a  frequentar umas aulas de atuação, porque um amigo disse que nos faria bem. Eles nos deram uma série de exercícios de improviso e, no primeiro, nós nos envenenamos, no segundo, nós nos traímos e, no terceiro, o instrutor, que falava com um sotaque pesado e indistinto, disse, “Agora, troquem de parceiros”. E, em alguns segundos, já não éramos mais nós dois, era só eu. A nova mulher que era minha parceira disse, “Vamos fazer um esquete no qual você é um bebê e eu te dou à luz e eu te cuido e eu te protejo de todo o mal”. E eu disse, “Claro, por que não?” Mas assim que ela terminou de me dar à luz, e me cuidar e me proteger de todo o mal, nosso tempo acabou e o instrutor com sotaque esquisito perguntou se o exercício trouxera de volta alguma memória primeva, e eu disse que não, porque não queria admitir que havia trazido memórias antigas, de milhões de anos atrás, de antes ainda de nós termos emergido das águas. A seguir, em casa, nós nos metemos em uma discussão sobre alguma coisa bem besta e tivemos a maior briga de todas desde que fomos criados. Nós gritamos e choramos e quebramos coisas que, se tivessem nos perguntado um dia antes, diríamos que eram coisas inquebráveis. Depois jogamos nossos pertences em uma mala e enfiamos o que não coube na mala em sacolas de supermercado e arrastamos tudo isso conosco, como se fôssemos moradores de rua, para o apartamento onde um amigo muito bem de vida morava e ele jogou um lençol no sofá retrátil para nós. Ele nos disse que agora essa situação podia até parecer o fim do mundo, mas que pela manhã a raiva e os sentimentos feridos desapareceriam e as coisas seriam diferentes. E nós dissemos não, algo se quebrou, algo foi estraçalhado, uma coisa que jamais conseguiremos reparar ou perdoar. Nosso amigo acendeu um cigarro e disse, “ok, talvez sim. Mas posso só perguntar uma coisa — por que você sempre fala no plural?” Em vez de responder, apenas olhei ao redor e percebi que eu estava sozinho — totalmente sozinho.

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