imaterialidade, materialidade e tempo

a alma como pracinha do corpo 🧒

1.

existe uma vida completamente imaterial em cada um de nós. um parquinho etéreo. uma pracinha da alma, se preferir. e pra quem está numa experiência de co-living com outros seres humanos nesse mundo, um playground do spirit. ironicamente, quem brinca nesse lugar espiritual, ou imaginário ou intangível, é o corpo.

2.

talvez não haja nada mais materializador da vida do que o corpo. passar o dia inteiro bebendo água porque sua garrafa está ali como um lembrete de que é necessário se hidratar e notar, com uma surpresa idiota, que sua bexiga está a ponto de explodir para, então, mijar. ou ainda, em uma materialização de vida menos interessante; estar confortavelmente agasalhado andando pela casa depois de tomar banho depois de arrumar a casa e inescrupulosamente, com a confiança de um passo rumo a uma vitória qualquer, acertar o dedo mínimo do pé na quina de algum móvel detestável.

existe, sim, uma vida imaterial. mas, o corpo está sempre lá pra nos mostrar que, sim, estar vivo pode ser um delicioso castigo e vice-versa.

3.

enlutar-se por uma pessoa querida mostra o mesmo. desde que meu pai faleceu, lembro-me de frases inteiras que ele me disse e também de coisas aprendidas em silêncio. é difícil o dia em que eu não pense nele. e porque o seu corpo não é mais nesse mundo, sua existência passa a ser um anexo das minhas lembranças — que o tempo, curiosamente, intensifica através de um incrível serviço de seleção e edição de melhores momentos.

4.

recentemente, comprei um relógio. de ponteiros. a ideia é que pra dar aulas e marcar o tempo de certas atividades os ponteiros ajudam a reduzir a ansiedade. existe algo na minha lerdeza de calcular a tabuada de cinco pra contar os minutos que faz com que pareça, realmente, que o tempo esteja ali mais à minha mão. palpável. material. corporal. talvez até mais lento.

5.

um adendo interessante pra corporificação do tempo oferecida pelo relógio vêm com o barulho das engrenagens, que não dá pra ouvir no sacolejar do transporte público ou em uma sala de aula com algumas dezenas de adolescentes. mas quando há absoluto silêncio. começa.

tic

tac

tic

tac

tic…

o tempo falando assim de uma maneira mais cadenciada, gradativamente, em vez dos arroubos dos malditos alarmes e despertadores burocráticos que dificilmente trazem um compromisso interessante e parecem sempre aterradoras surpresas, apesar de sua programação.

6.

6h32 — ler um poema do manoel de barros;

8h47 — dizer que admira o sorriso de alguém cujo sorriso você sempre admirou e nunca disse;

22h52 — ficar feliz por ter se arrependido de algo que realmente merecia arrependimento.

não há alarmes assim. há?

o fato é que: existe, sim, uma existência totalmente imaterial pra nós. a ela, ou se leva o corpo pra brincar, ou se morre uma vida triste triste.

aproveitando que estamos falando de tempo, a partir de agora esta newsletter passa a ser quinzenal.

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