Ceia

um conto de natal

olá, leitores. pra quem é de natal, um feliz natal. escrevi um conto inédito para esse feriado.

no final do post, tem uma surpresinha/novidade (se você já quiser ver o que é, vem aqui1 ).

até o ano que vem.

um abraço.

Tarde

Não havia cidades. Não havia leis. Não havia códigos. Não havia luz, exceto quando um clarão rasgava o céu e tocava a copa de alguma árvore. Não havia comunicação, exceto quando eles apontavam, gesticulavam e faziam sons guturais. A verdade é que não havia quase nada do que há hoje. E, até então, para eles, também não havia sequer outros iguais.

Nem se houvesse palavras seria possível descrever as expressões que ambos fizeram quando se entreolharam pela primeira vez. Aquilo que talvez fosse susto, espanto, perplexidade, logo deu lugar ao medo e à única reação até então consequência natural desse sentimento — o instinto de sobrevivência que fez com que começassem a correr o mais rápido que podiam. Tentando capturar e escapar, respectivamente, um ao outro.

A perseguição seguia por entre galhos, saltando arbustos e pequenos empoçamentos. Esbarravam em cipós e tropeçavam em pedras. Naturalmente, arranhões surgiam aqui e ali. Os outros animais observavam a cena, e não com menos medo do que aqueles que corriam e pulavam mata adentro. Pássaros batiam em revoadas a cada grito que eventualmente surgia quando uma pedra mais pontuda incomodava a sola do pé, ou um galho perdido lhes acertava os braços. Um contra o outro e a floresta contra ambos. Afinal, no alvorecer da humanidade, depois do vazio, das águas, do calor e do frio, a terra ainda estava por ser desbravada por quem tivesse mãos e pés, braços e pernas. A selva fez espaço para si em todos os cantos aonde havia chegado e deixava a sua hostilidade muito clara a quem não quisesse ali viver como planta. Estender lentamente suas raízes, ver crescer seus galhos e folhas aos poucos, ver morrer parte da sua produção para que, ao chão, viesse a adubar a terra e fazer novamente parte do próprio sustento.

  Quem a isso estivesse oposto, encontraria resistência nos espinhos, folhas venenosas, raízes grossas e fincadas com firmeza no chão em curvaturas que fizessem tropeçar ou prender patas. Cipós que enrolassem membros, pescoços — que se confundissem com cobras. Folhagens que escondessem, ou ainda abrigassem, feras que, assim como quem ia em disparada agora, tinham muito claro o instinto de sobreviver. Continuar ali tanto tempo quanto possível sem saber absolutamente o porquê.

Eram os últimos momentos de luz, o que trazia urgência à caçada. Quem a iniciou buscava livrar-se daquilo que poderia ser mais uma ameaça, além de todo o perigo que a floresta trazia e também a fera que caça à noite. Tudo isso, naquele primeiro olhar que trocaram, na expressão de espanto, era o esperado. Mas, o inesperado estava por acontecer. Quando a distância encurtava graças à velocidade de quem caçava e ao cansaço da caça, e, por fim, o episódio encontraria sua conclusão, uma folha maior e mais úmida fez com que escorregassem e rolassem juntos até bater com força no tronco de uma árvore que tremeu. A natureza dali, apesar de inóspita, às vezes, parecia atender aos pedidos dos seres que dela dependiam — não sem algum capricho. O impacto na árvore derrubou dois frutos grandes aos pés cansados de quem estava ali caído. Ao bater no chão, os frutos se partiram, deixando suas polpas à mostra, suculentas e apetitosas. Comeram com voracidade extrema, respeitando tacitamente que cada um comeria um fruto. Tinham uma embaraçosa fome, talvez pela correria, talvez por dias ruins de caça.

Comer junto parece ser uma tradição intrinsecamente formadora de alianças. Agora que tinham se alimentado, não pareciam mais ter medo de si e tomaram a mesma direção na contínua caminhada que faziam sempre depois de caçar e comer. Agora que não mais corriam, foi possível ver no antebraço de quem perseguia uma mancha. A noite estava muito, muito próxima. O sol havia praticamente se posto, mas estavam de barriga cheia e em paz. A vítima da perseguição, apontava e gesticulava muito em uma certa direção. Com sons guturais, foi dando as direções até que finalmente encontraram, em um grande muro de pedra, do qual da base mal se podia ver o final, um buraco. Para entrar, era necessário abaixar e rastejar. Uma vez dentro da caverna, entendiam estar mais em proteção, porque a entrada ficava oculta pelas trevas da noite. Mesmo os animais mais astutos só poderiam chegar ali se tivessem o caminho memorizado. Apesar da segurança, porém, o ambiente era lúgubre e úmido — excessivamente úmido! As peles que vestiam estavam pequenas e gastas, mal cobriam o corpo. Perceberam-se com o mesmo frio e também que os próprios corpos seriam capazes de aquecê-los caso estivessem bem próximos. Naquela noite, uniram-se para dormir.

Fizeram o mesmo em todas as outras noites e perceberam que na sua aliança tinham mais condições continuar sobrevivendo. Protegiam-se do frio, caçavam mais e comiam mais, e quando alguém não encontrava alimento, ainda o outro poderia compartilhar do que havia achado. A luta áspera e diária pela sobrevivência havia se tornado mais agradável, mais fácil até.

Um dia, estavam no rio. Viram peixes e tentavam pegá-los com as mãos. Não era nada fácil, mas já haviam conseguido um. Tentavam outro, porque queriam dois, assim como os frutos dados pela árvore do primeiro encontro. O rio, porém, sinuoso, traiçoeiro, não gostava de abençoar como a árvore. Ao contrário. Uma pedra com limo produziu o escorregão que, com a batida do chão, fez outra pedra rolar por cima do pé de quem havia acabado de cair. Os gritos não deixaram dúvida, não seria possível erguer-se ou correr, durante muito tempo. Com a mesma velocidade da queda e da dor, o pé inchou e ficou roxo, e era impossível de firmá-lo no chão sem que um rastro de dor percorresse toda a perna até o início da espinha. Seriam vários dias de caçada a um e de espera. Ainda bem que tinham uma parceria. A princípio, a ideia de esperar irritava um pouco, mas Pé Ferido aprendeu a temperar sua espera com memórias ternas e a expectativa do alimento trazido por Mancha.

Havia um receio de que Mancha não voltasse. Porém, após vários retornos quando estava perto de a luz se esvair por completo, alguma confiança foi construída e, apesar da dor no pé e das limitações para se movimentar, os dias não iam mal.

Noite

Em uma outra tarde, como qualquer outra das tardes que haviam vivido até então, Mancha teve de sair para procurar por comida. Uma fruta, um vegetal, um animal, grande ou alguns pequenos. Pé Ferido, naturalmente, seguiu a sua rotina de aguardar na entrada da caverna enquanto ainda houvesse luz.

A luz, porém, foi se apagando e Mancha ainda não havia voltado. Realmente, nos últimos tempos, demorava um pouco mais para encontrar comida, mesmo antes de ter se machucado, Pé Ferido havia notado isso. Contudo, a luz nunca havia ido completamente embora antes que Mancha tivesse retornado. Algo novo tomou vida em Pé Ferido.

As memórias, que temperavam a espera, viraram preocupação. E se Mancha não voltar — não haverá comida, não haverá Mancha. Para ainda mais, Pé Ferido, rudimentarmente da forma como podia, começava a imaginar o que teria acontecido. A fera que caça à noite poderia ter saído em busca de alimento mais cedo. Mancha também poderia ter caído em algum buraco, sem conseguir sair, em uma natureza tão selvagem, nunca se sabe o que pode acontecer. É claro que ainda não existiam palavras para Pé Ferido expressar toda a sua angústia, mas todas as suas feições traduziam o cheiro do medo que inalava um pouco da natureza e um pouco do próprio corpo. Olhava o pé com atenção, ainda bastante inchado e, embora conseguisse se apoiar rapidamente sobre ele, não seria suficiente nem para uma caminhada curta.

A luz se apagara por completo. Hora de entrar na caverna. Como de costume, com alguma dificuldade. Na parte do solo onde não havia pedregulhos, onde dormiram juntos nas últimas noites, Pé Ferido pôs-se a pensar se não seria o caso de ir em busca de Mancha. Talvez precisasse de ajuda. Enquanto pensava, olhava e às vezes tocava seu pé. Fechou os olhos e ficou esperando o sono chegar, talvez Mancha chegasse na caverna enquanto Pé estivesse dormindo.

Pé Ferido, porém, não contava com o sonho que lhe tomara de assalto. Mancha aparecia morto, estraçalhado enquanto era observado. Pé Ferido olhava então para a fera que caça à noite, com o sangue pingando de suas presas, provavelmente ainda quente. Então, enquanto Pé Ferido chorava a morte de Mancha, a fera que caça à noite saltou com as garras expostas sobre Pé Ferido. Acordou. O suor em todo o corpo e um grito ecoando nas paredes da caverna. Pé Ferido se ergueu apoiando-se na parede com uma decisão tomada — sairia à procura de Mancha. O pé ainda era um problema. Vasculhou pelo chão da caverna e em um canto pouco explorado acabou encontrando um galho pouco maior que suas pernas. Não era ideal, mas conseguiria se apoiar sobre ele curvando-se pouco. O desconforto não era tão grande e o contato do pé com o chão era mínimo. Caminhava com dificuldade e devagar, mas, se tivesse paciência, conseguiria andar boas distâncias. Teria de redobrar a atenção na mata — com pouca mobilidade, estava uma presa fácil. Entretanto, o aumento exponencial da preocupação faz diminuir toda e qualquer prudência.

Passou um bom tempo caminhando na mesma direção em que Mancha estava indo quando saiu para caçar. Isso, certamente, não representava uma grande distância percorrida, mas já era algo. De alguma forma, porém, sabia que estava indo para o caminho certo, se houvesse alguma palavra que pudesse explicar o que estava pensando, talvez fosse “intuição”. Foi quando ouviu um farfalhar — precisava se esconder. Deitou-se no chão em um declive atrás de uma gigantesca raiz e se cobriu com terra e folhas da melhor forma que pôde. Manteve seu campo de visão direcionado para o lugar de onde vinha o ruído que havia escutado. Suas suspeitas estavam certas.

A fera que caça à noite se aproximava a passos lentos e farejando, mas não tinha a atenção de quem caçava. Com atenção, Pé Ferido percebeu que a boca da fera estava suja, parecia estar alimentada. Seus movimentos eram lentos naquele momento. Achar o que comer, seria lucro, embora esse não fosse o seu objetivo. A musculatura relaxada e os passos pesados sugeriam a procura por um lugar de descanso. Pé Ferido não pôde se deter de pensar no sonho. O animal vinha se aproximando cada vez mais, chegando perto da raiz que escondia o declive onde Pé se deitava, controlando-se ao máximo para não se movimentar, mantendo a respiração o mais serena e menos ruidosa possível. Qualquer barulho seria fatal.

E aconteceu! A uma distância média de onde estavam, um estampido grande, como se um fruto ou um animal tivesse despencado de alguma árvore, esbarrando nos galhos e então atingindo o chão com assombrosa força. Pé Ferido viu a fera que caça à noite dando-lhe as costas e indo em direção ao barulho. Sentiu muito alívio, mas manteve toda a sua atenção até ver a fera desaparecer saltando para dentro de um arbusto. Depois, ficou ali, ao chão, respirando baixo e, mais uma vez, esperando, até ter certeza de que poderia continuar sua caminhada.

Quando finalmente se levantou, e voltou a orientar-se para a direção de Mancha, percebeu um sinal estranho. Era fumaça, e só se via tal coisa depois de grandes chuvas com raios que vez ou outra tocavam e queimavam as árvores e os galhos. Não havia chovido em qualquer um dos dias anteriores.

Seguiu rumo à fumaça.

Encontro

          Com incontáveis passos de uma caminhada que, apesar de tomar muito tempo, parecia não evoluir, Pé Ferido finalmente aproximava-se do foco da fumaça. À distância, percebeu que havia fogo saindo do chão e havia barulho, como se um grupo de animais estivesse comendo. Porém, à medida que chegava mais perto, percebia sons familiares. Alguns guturais parecidos com os que fazia quando estava com Mancha.

          Num dado momento, pôs-se atrás de uma árvore com o tronco largo. Escondia-se, pois havia o receio de o grupo ser de criaturas violentas, aproveitando-se de um fogo misterioso para se aquecer à noite. Em sua perplexidade, fez que voltaria algumas vezes o caminho, mas a curiosidade empurrava Pé Ferido para entender o que estava acontecendo. E a preocupação também.

          Foi quando, de relance, viu Mancha passar em frente ao fogo, agachar e levantar-se com um pedaço de carne nas mãos. Acelerou a sua caminhada para ir até lá e na descoordenação do uso rápido do cajado, apoiou o pé no chão mais do que devia algumas vezes, sentindo tamanho incômodo, mas controlando-se para não emitir nenhum som. Seguiu mesmo assim. O aumento do alívio, também diminui a prudência. Quando saiu de trás de um arbusto e a claridade do fogo tocou seu rosto, ouviu o grito e o avançar violento de três outras pessoas. Mancha, rapidamente, se colocou entre eles e Pé Ferido, vociferando com intensidade e gesticulando descompensadamente. Funcionou. Os outros se afastaram. Mancha era maior do que todos eles. Então, foi até o animal que estava ao lado do fogo, arrancou uma nacada de carne e serviu uma fatia generosa para cada um dos três homens que observavam suas ações em absoluto estado de perplexidade. Depois de servi-los, Mancha terminou com uma porção ainda rechonchuda na mão. Os dedos mal fechavam.

          Essa fatia de carne suculenta, de um vermelho intenso e sem nenhuma gordura ou nervo aparente, Mancha mordeu uma única vez, dando todo o restante a Pé Ferido — que começou a comer com desconfiança enquanto observava os outros assistindo imóveis e atentos a toda aquela cena. Não houve mais protesto e ficaram todos ao redor do fogo. Mancha ao lado de Pé Ferido e os outros do lado oposto. Dividiram até o último pedaço de carne que era possível comer, alimentando por fim o fogo com a carcaça do animal. Nunca se sabe quando será possível um banquete como esse de novo. Empanzinados, deitaram-se todos para dormir, os outros olharam com curiosidade para o jeito de Mancha e Pé Ferido dormirem, juntos, aquecendo-se perto do fogo. Tentaram fazer o mesmo, mas a pouca destreza que tinham para estarem próximos uns dos outros os impediu de encontrar uma posição confortável. Ao cabo de algumas tentativas, optaram por ficar cada um em seu canto.

          Mancha pegou no sono primeiro — sonoramente. Pé Ferido, antes de adormecer, perguntava-se por que Mancha não havia retornado para a caverna e se acaso voltaria no dia seguinte se não tivesse sido encontrado.

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